A aprovação da Proposta de Lei de Conteúdo Local nos moldes em que foi elaborada não resolverá os problemas relacionados com a escassa participação da indústria nacional de bens e serviços, em bases competitivas, nos diversos projectos a serem desenvolvidos no país, pois esta define as obrigações de forma muito genérica, sendo necessária a sua regulamentação para que esta tenha aplicação prática, considera a Advogada Mara Rupia Lopes, da sociedade de advogados Henriques, Rocha & Associados.
Segundo a Dra. Mara Rupia Lopes, a própria Proposta reconhece que os operadores económicos devem observar as normas sobre a incorporação do conteúdo nacional constantes da lei e de regulamentação a ser aprovada pelo Conselho de Ministros. Ou seja, sem a referida regulamentação, as obrigações limitar-se-ão a existir num plano meramente teórico, sem que seja possível exigir e fiscalizar o seu cumprimento.
A Dra. Mara Rupia Lopes começa a sua análise fazendo referência à polémica que se tem assistido nos últimos três anos, devido a demora na aprovação da proposta de lei, após amplamente discutida em diversos fóruns, quer pelo tecido empresarial quer pela sociedade civil em geral, sendo que, recentemente foi a Confederação das Associações Económicas de Moçambique (CTA), no seu papel de representante do sector privado, a se pronunciar sobre a delonga.
A Advogada, filiada na Henriques, Rocha & Associados, clarifica que, da mera aprovação da Proposta não irá decorrer uma maior participação do sector privado moçambicano nos mega projectos ou na sua cadeia de valores, considerando os termos em que se encontra redigida a última versão da Proposta que foi divulgada pelos órgãos competentes e sujeita a consulta pública, sendo que, nos termos da Proposta, a Lei de Conteúdo Local irá estabelecer o regime jurídico da incorporação do conteúdo nacional nos bens e serviços a serem produzidos e transaccionados em território nacional e será aplicável a todos operadores económicos que, no exercício da sua actividade, produzam bens e prestem serviços em Moçambique.
De acordo com a Proposta, em conformidade, os bens e serviços devem ser produzidos e prestados, na sua totalidade ou parcialmente, com recurso a factores de produção nacionais. Isto é, os elementos necessários para a produção de bens ou prestação de serviços, designadamente as matérias-primas, equipamentos e mão-de-obra, devem ser nacionais, sendo que, na sua opinião, esta regra geral encontra a sua excepção na medida em que ficam excluídos os casos de impossibilidade de produção e transmissão de bens e serviços com incorporação de factores de produção nacional, nomeadamente quando estes não satisfaçam as características e funcionalidades exigidas ou inerentes à natureza do projecto e à respectiva actividade a desenvolver e a explorar.
Por outro lado, o dispositivo avança que, os operadores económicos que pretendam adquirir bens e contratar serviços devem dar preferência aos bens e serviços produzidos com recurso aos factores de produção Nacional.
De forma a materializar a implementação, por parte dos operadores económicos, das disposições da Proposta, esta prevê que os operadores económicos devem dispor de um Plano de Conteúdo Nacional, no qual estabelecem as acções e estratégias de longo prazo concebidas para implementar as disposições a que estão obrigados. Este Plano de Conteúdo Nacional deve conter as informações sobre a Transferência de tecnologia e conhecimento para os trabalhadores moçambicanos; Recrutamento de mão-de-obra local e Acções de Treinamento/ Capacitação de trabalhadores.
Ainda na mesma senda, o Plano de Conteúdo Nacional deverá ser submetido à “Comissão para o Conteúdo Nacional”, instituição a constituir conforme previsto na Proposta e que pretende zelar pela observância da incorporação do Conteúdo Nacional pelos diversos operadores económicos.
Ainda na sua análise, a Dra. Mara Rupia Lopes faz notar vários problemas de articulação entre esta lei de carácter geral e as diversas leis sectoriais, tendo como exemplo a indústria extractiva e os diplomas aplicáveis àquele sector, que já prevêem várias obrigações de conteúdo local, sendo aquelas mais exigentes até que as disposições da Proposta.
Adicionalmente, para a Advogada, é necessário analisar, à luz das disposições de teoria geral do direito civil, a sobreposição de dois actos legislativos de carácter distinto sobre o mesmo tema: nos termos do disposto no número 3 do artigo 7.º do Código Civil, a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador. Acontece que o legislador, no texto da Proposta, não revoga expressamente as disposições sectoriais aplicáveis ao conteúdo local e aí coloca-se a dúvida sobre qual seria a sua intenção. Devem manter-se em vigor, pelo menos até à aprovação da regulamentação da lei de conteúdo local, as disposições contidas em regimes especiais, ainda que estas prevejam mais obrigações para os operadores económicos? Consideram-se imediatamente revogadas as disposições contidas em regimes especiais, ficando os operadores sem quaisquer directivas até que seja aprovada a regulamentação da lei de conteúdo local? Estas questões, como se pode comprovar, não são de fácil resolução e influenciam a segurança jurídica do País.
Por outro lado, existem projectos cuja legislação aplicável estabelece um regime de estabilidade legal e fiscal a favor das concessionárias, tal como o previso no regime jurídico e contratual especial aplicável ao Projecto de Gás Natural Liquefeito nas Áreas 1 e 4 da Bacia do Rovuma. Ao abrigo dos referidos regimes de estabilidade legal, verificando-se a aprovação de uma nova lei, regulamento ou acto administrativo ou uma alteração daqueles, que implique a imposição de novos impostos, tributos, direitos aduaneiros, taxas, imposições ou encargos de qualquer outra natureza que afecte adversamente os benefícios económicos das concessionárias, o Governo fica obrigado a restituir os benefícios económicos que as concessionárias teriam ou receberiam se as alterações acima descritas não se tivessem verificado. Nessa perspectiva, se com uma mão obrigamos os operadores económicos a investir e a transferir receitas e proveitos para a economia local, com a outra mão tiramos verbas no erário público para pagar pelo aumento de custos que os operadores venham a ter. Portanto, a transferência de proveitos não resulta das disposições de conteúdo local, mas sim de um “investimento indirecto” do Estado.
Por último, a Dra. Mara Rupia Lopes adverte que a implementação efectiva e eficaz da Lei do Conteúdo Local não exige apenas regulamentação, pelo que, exige também formação e capacitação da mão-de-obra local e investimento na melhoria da qualidade dos produtos e serviços prestados e menor morosidade do processo produtivo, sob pena de continuamos a assistir à utilização sistemáticas da excepção à preferência local com o argumento que os produtos e serviços locais não se comparam aos padrões internacionais.